União: Calamidade Pública e as Regras Fiscais¹

Diante da pandemia do Covid-19 a União decretou Estado de Calamidade Pública. Primeiramente é importante saber o que caracteriza essa situação. Segundo decreto federal³ , trata-se de situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido.

Pela definição se verifica que o estado de calamidade pública é decretado por governantes em situações reconhecidamente anormais, decorrentes de desastres (naturais ou provocados) e que causam danos graves à comunidade, inclusive ameaçando a vida dessa população. É preciso haver pelo menos dois entre três tipos de danos para se caracterizar a calamidade: danos humanos, materiais ou ambientais.

Um fato relevante no modelo brasileiro é que a decretação desse estado é uma prerrogativa reservada para as esferas estadual e municipal, isto é, somente governadores e prefeitos podem decretar calamidade pública. Mas, e o presidente da república, por que não tem essa prerrogativa? Na esfera federal, podem ser decretados apenas dois tipos dos chamados estados de exceção: o estado de defesa e o estado de sítio – que é o mais grave.

Então, no caso do Presidente, por que decretar? Primordialmente para usufruir dos benefícios previstos no artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF):

LRF, Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação: (grifo nosso)

I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70;

II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput no caso de estado de defesa ou de sítio, decretado na forma da Constituição.

Assim a principal vantagem, no caso da União, é que uma vez decretada e aprovada pelo Congresso Nacional há suspensão de prazos para cumprimento de limites fiscais estabelecidos na LRF e principalmente o fato do governo ficar desobrigado de fazer contingenciamentos para atingir a meta fiscal.

Segundo o artigo 65 da LRF ficam suspensos os prazos previstos para:

a) ajustar o montante da despesa com pessoal que estiver acima do limite em cada Poder ou Órgão – dois quadrimestres, sendo pelo menos um terço no primeiro;
b) recondução do valor da dívida consolidada ao limite estipulado na resolução do Senado – três quadrimestres, reduzindo o excedente em pelo menos 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro;

Considerando que a União no momento não desrespeita limites de pessoal e de dívida restou a real motivação para decretação de estado de calamidade: a dispensa de atingir resultados fiscais, em especial a meta de resultado primário prevista para 2020, que era um déficit da ordem de 124 bilhões de reais. Assim, o governo não precisará mais contingenciar despesas a cada bimestre para adequar a programação financeira ao cumprimento da meta fiscal como estabelece o artigo 9º da LRF. Com a crise estima-se que esse déficit ficará acima de 200 bilhões.

Uma questão interessante é: como o Presidente pode cumprir a LRF se não pode decretar estado de calamidade? Deve enviar mensagem ao chefe do Poder Legislativo solicitando a decretação. Por isso que o decreto legislativo que reconheceu a calamidade pública estabelece que o faz somente para fins de atender o artigo da LRF:

DECRETO LEGISLATIVO Nº 6, DE 2020

Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

Art. 2º Fica constituída Comissão Mista no âmbito do Congresso Nacional, composta por 6 (seis) deputados e 6 (seis) senadores, com igual número de suplentes, com o objetivo de acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19).

§ 1º Os trabalhos poderão ser desenvolvidos por meio virtual, nos termos definidos pela Presidência da Comissão.

§ 2º A Comissão realizará, mensalmente, reunião com o Ministério da Economia, para avaliar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19).

§ 3º Bimestralmente, a Comissão realizará audiência pública com a presença do Ministro da Economia, para apresentação e avaliação de relatório circunstanciado da situação fiscal e da execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19), que deverá ser publicado pelo Poder Executivo antes da referida audiência.

Art. 3º Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.

Senado Federal, em 20 de março de 2020.

Logo, no caso específico da União, vimos que a principal motivação para reconhecer estado de calamidade foi ampliar o espaço fiscal para que sejam autorizadas ações de combate à pandemia do Covid-19. Contudo, não se pode esquecer que esse reconhecimento também permite dispensa de licitação na forma do inciso IV do artigo 24 da Lei nº 8.666/1993, bem como afeta outras regras relacionadas com rescisão de contratos celebrados pela administração pública previstas nesta mesma lei.

Paulo Henrique Feijó²
Professor, Escritor e Contador

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¹ O conteúdo deste trabalho é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião de instituições e grupos com as quais tem relação profissional.

² Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi – Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Volume 2: Suprimento de Fundos; Entendendo Resultados Fiscais; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Patrimonial Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Representante do CFC na Associação Interamericana de Contabilidade (AIC).

³ Decreto nº 7.257, de 4 de Agosto de 2010.

31 de agosto de 2020

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