Suspensão de Recolhimento da Contribuição Patronal: Empenhar ou não Empenhar, Eis a Questão.

1. Contexto:

A Lei Complementar 173 (PLP 39/2020) que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19). Na essência o referido Programa dispões sobre um conjunto de medidas que visam dar apoio financeiro aos Estados e Municípios em dois pilares:

1) Reforço nas receitas (Art. 1º, §1º, Inciso III):

a) Auxílio Financeiro Emergencial Federativo: Consiste na entrega de recursos da União para os Estados, Distrito Federal e Municípios em duas componentes: a) livres; b) vinculados a despesas com a Covid.

2) Economia de despesas (Art. 1º, §1º, Incisos I e II).

a) Suspensão dos pagamentos das dívidas contratadas com a União (Art. 1º, §1º, Inciso I): A suspensão irá até dezembro de 2020, sendo que os valores suspensos serão incorporados e começam a ser pagos a partir de janeiro de 2022;

b) Reestruturação de operações de crédito interno e externo junto ao sistema financeiro e instituições multilaterais de crédito (Art. 1º, §1º, Inciso II): Possibilidade suspensão dos pagamentos devidos no exercício financeiro de 2020 para operações de crédito internas e externas.

c) Suspensão, para os Municípios, dos pagamentos das dívidas previdenciárias com o RGPS (Art. 9º): Segundo a lei ficam suspensos, na forma do regulamento, os pagamentos dos refinanciamentos de dívidas dos Municípios com a Previdência Social com vencimento entre 1º de março e 31 de dezembro de 2020.

d) Suspensão, para os Municípios, do recolhimento das contribuições previdenciárias patronais devidas aos respectivos RPPS (Art. 9º, §2º): Desde que autorizada por lei municipal específica também pode ser suspenso o recolhimento das contribuições previdenciárias patronais dos Municípios devidas aos respectivos regimes próprios com vencimento entre 1º de março e 31 de dezembro de 2020.

Claramente o objetivo principal da Lei foi proporcionar a ampliação do espaço fiscal dos entes subnacionais para fins de combate à pandemia. O apoio da União veio por meio de repasse de recursos que ajudam a compensar as perdas de arrecadação e diminuição de despesas com dívidas, com isso os recursos que orçamentariamente estavam comprometidos para o pagamento dessas dívidas poderão ser destinados ao combate da pandemia.

Vale salientar que a Covid-19 não afetou somente despesas com saúde, mas também com assistência social aos mais vulneráveis e em alguns entes foi criada ação para pagamento de subvenção às empresas privadas visando garantir níveis de emprego.


2. 
A Polêmica sobre o Empenho da Contribuição patronal

Como apresentado, uma das medidas de auxílio fiscal aos municípios foi a suspensão do recolhimento das contribuições previdenciárias patronais devidas aos respectivos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) na forma do artigo transcrito a seguir:

Art. 9º Ficam suspensos, na forma do regulamento, os pagamentos dos refinanciamentos de dívidas dos Municípios com a Previdência Social com vencimento entre 1º de março e 31 de dezembro de 2020.

§ 1º (VETADO).

§ 2º A suspensão de que trata este artigo se estende ao recolhimento das contribuições previdenciárias patronais dos Municípios devidas aos respectivos regimes próprios, desde que autorizada por lei municipal específica.

Desde a publicação da Lei se iniciou uma polêmica entre os especialistas em finanças públicas sobre a necessidade ou não de se empenhar a despesa da contribuição patronal, não obstante o pagamento/recolhimento estar suspenso. Vários são os argumentos dos que defendem o empenho da despesa, mas em comum esta defesa de que a medida de suspensão do recolhimento da contribuição patronal como alívio fiscal aos municípios pode comprometer a solvência do RPPS, em alguns casos poderá inviabilizar o pagamento da folha de inativos e afetará negativamente o resultado atuarial.

São inegáveis os impactos negativos na gestão do RPPS decorrente da suspensão do recolhimento da contribuição patronal. Contudo, vale ressaltar que a suspensão não ocorre de forma automática, pois a lei Complementar exige que para entrar em vigor seja autorizada por lei municipal específica.

Assim, deve-se entender como uma “arma fiscal” que pode ou não ser utilizada. É transparente que, caso a suspensão comprometa o pagamento da folha de inativos não haverá nenhum ganho fiscal em aprovar a suspensão, pois o Tesouro municipal teria que cobrir esse déficit com outras fontes e ainda estaria gerando uma dívida para pagamento futuro com o RPPS.

Outro ponto a destacar é que para alguns municípios deixar de apropriar orçamentariamente a despesa com contribuição patronal poderá comprometer o cumprimento de limites mínimos de educação e saúde. Nesse caso também parece cristalino que não há vantagem em atender despesas com a pandemia e deixar de cumprir limites constitucionais que comprometerão a aprovação de contas do gestor. Seria irracional pensar que um gestor cometa esse suicídio político. Sobre a questão dos limites de gastos mínimos vale ainda destacar que para efeito de cálculo dos recursos mínimos em saúde, serão consideradas: a) as despesas liquidadas e pagas no exercício; e b) as despesas empenhadas e não liquidadas, inscritas em Restos a Pagar até o limite das disponibilidades de caixa ao final do exercício, consolidadas no Fundo de Saúde². Assim, para muitos Tribunais de Contas deixar restos a pagar sem lastro financeiro significa exclusão do gasto par fins de cumprimento de limite mínimo constitucional.

Qual a saída nesses casos? Não aprovar a lei municipal, pois não haverá benefício nenhum para a condução da política fiscal do município nem para a prestação de contas do gestor. Com isso, é importante separar efeitos fiscais da aplicação da lei do cumprimento das regras e princípios orçamentários, pois merecem avaliações distintas.


3. 
O Princípio da Anualidade Orçamentária

Entrando na discussão sobre a necessidade ou não de empenhar essa despesa que não será paga no exercício, primeiramente há que ressaltar o respeito ao princípio da anualidade orçamentária da receita e despesa. Conforme regulamenta legislação federal e em respeito ao princípio da anualidade, as despesas relativas a contratos, convênios, acordos ou ajustes de vigência plurianual, serão empenhadas, em cada exercício financeiro, pela parte nele a ser executada³.

Alguns especialistas defendem que esse dispositivo que é decorrente de artigo de decreto federal somente se aplica à União. Com todo o respeito aos pensamentos divergentes o decreto federal apenas disciplina de forma clara o princípio da anualidade, que por sua vez deve ser seguido por todos os entes.

Outra argumentação é que caso a regra da anualidade fosse aplicada, seria para os valores já́ parcelados e não para a contribuição patronal corrente que deixaria de ser paga no exercício. Há que se lembrar que o empenho da despesa ou a alocação de créditos orçamentários não tem relação direta com a existência ou não de passivos, mas com a possibilidade ou necessidade de efetivação do pagamento da despesa no exercício, independentemente da existência ou não de passivos. Aliás, na maioria dos casos o passivo é gerado após a fase do empenho.

Para exemplificar o princípio da anualidade, imagine que uma entidade pública deseja alugar uma sala no período de 01/08/X1 a 31/07/X2. Escolhido o local antes de assinar o contrato a entidade deverá empenhar a despesas, pois para garantir o empenho prévio o contrato deverá ter o número da Nota de Empenho. Supondo que o aluguel mensal seja de $1.000 unidades monetárias, qual deverá ser o valor do empenho? O valor total do contrato? Não. O valor do empenho será no montante da despesa que se espera executar no exercício, isto é, para o exercício de X1 o valor de $5.000 (agosto a dezembro). Em janeiro de X2 a unidade deverá emitir empenho da parte a ser executada em X2 no valor de $7.000, preferencialmente nos primeiros dias de janeiro de X2. Estaria correto empenhar o valor total e inscrever o saldo em restos a pagar? Tal procedimento não estará compatível com o princípio da anualidade do orçamento.

Dessa forma, seja para dívida parcelada ou para nova dívida gerada pela suspensão do recolhimento da patronal o que interessa para fins de alocação orçamentária será a necessidade ou não de desembolso no exercício. Um exemplo clássico de que o empenho da despesa não tem relação com a existência ou de passivos é o caso de empréstimos realizados pelo ente que somente devem ser pagos em exercício futuro. Ao receber os recursos do empréstimo nasce o passivo, portanto, a obrigação com o credor. Contudo, a cada exercício o quanto será alocado para pagamento dessa dívida? Apenas os valores que se espera pagar no exercício.

Outro exemplo é o caso de precatórios ou dívidas judiciais em que o passivo é gerado e reconhecido em exercícios anteriores, mas os créditos orçamentários somente serão alocados nos orçamentos futuros, até o montante do que se espera pagar no exercício.

Assim, a suspensão da patronal gera um dívida no presente (2020) com previsão de ser paga em 2021, portanto os créditos orçamentário deverão ser alocados na LOA de 2021.

Há também a argumentação de que a despesa deveria ser empenhada, pois a legislação estabelece que pertence ao exercício financeiro a despesa nele empenhada, e que não deve haver despesa sem prévio empenho. Desta forma, e considerando que houve o reconhecimento das despesas de remuneração dos servidores, por imposição legal, haveria a exigibilidade das contribuições patronais dela decorrente.

Quanto a esse argumento tratam-se de duas verdades que não guardam correlação direta, sendo que a obrigação do empenho prévio e o reconhecimento no exercício financeiro é uma premissa legal indiscutível. Também não se discute que deverá haver o reconhecimento sob a ótica patrimonial da exigibilidade, ou seja, a suspensão do recolhimento ensejará o reconhecimento do passivo em contrapartida da variação patrimonial diminutiva (VPD), mas isso trata-se de Contabilidade Patrimonial. Como apresentado, sob a ótica orçamentária o que se deve avaliar é se a obrigação gerada precisará ser paga no exercício.

Nesse ponto o que também parece estar em discussão é se a obrigação reconhecida no fato gerador deverá ser sempre empenhada, o que não é uma verdade. Observe que o juros incidentes sobre dívidas deve ser reconhecido periodicamente aumentando o passivo em contrapartida de VPD. Contudo, não necessariamente precisará ser empenhado, pois somente a parcela a ser paga no exercício é que demandará crédito orçamentário e esta parcela, não será obrigatoriamente igual à reconhecida por competência, quando do fato gerador.


4. 
Não se Pode Perder a Essência da Lei

Apresentados os aspectos relacionados com anualidade orçamentária é preciso muita atenção para não se perder a essência do dispositivo legal. Nesse sentido, a ideia foi dar um fôlego fiscal para que o município possa se valer dos recursos que antes estariam destinados ao pagamento da contribuição patronal, para serem alocados em outra finalidade.

Caso tenha que empenhar a despesa perde-se o propósito da lei, pois obrigatoriamente teria que ser identificada a fonte que financiará a despesa e esta obviamente não estará mais disponível para financiar outra despesa, que é o objetivo do dispositivo legal.

Para rebater esta linha de raciocínio os defensores do empenho indicam a possibilidade do município abrir créditos extraordinários sem a indicação do recurso orçamentário que financiará o crédito. Tecnicamente é uma possibilidade, que sob o prisma fiscal gera exigibilidade e passivo sem lastro, da mesma forma que ocorrerá com a dívida decorrente da suspensão do pagamento da contribuição patronal.

Entretanto, sob uma ótica de equilíbrio orçamentário e financeiro e planejamento futuro, a abertura de crédito extraordinário pode ser pior do que a suspensão da patronal. Isso porque há exigência normativa de que o pagamento da dívida gerada pela suspensão terá que ser paga em 2021, portanto deverá estar prevista no orçamento futuro. Já o crédito extraordinário sem lastro financeiro poderá ser um desequilíbrio de 2020, não planejado no orçamento de 2021, que fatalmente ensejará o contingenciamento de despesas no exercício seguinte.


5. 
Conclusão

O benefício de suspensão do recolhimento da contribuição patronal na forma prevista na LC 173/2020 não é automático e depende de aprovação de lei municipal específica. Assim, trata-se de mecanismo que carece de avaliação por parte do gestor quanto ao custo/benefício de se utilizar, dado que pode ter impactos em limites constitucionais e de sustentabilidade do RPPS.

Obviamente, sob a ótica patrimonial é fundamental que se reconheça no fato gerador o passivo da contribuição patronal em contrapartida da variação patrimonial diminutiva, até porque esta informação deverá ser considerada como despesa com pessoal para fins de limite da Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece literalmente que a despesa com pessoal deve ser reconhecida por competência.

Dessa forma não se pode confundir efeitos fiscais decorrentes da aprovação de uma legislação com a aplicação de regras e princípios orçamentários, em especial o clássico princípio da anualidade orçamentária.

Não se discute o fato da suspensão do recolhimento da contribuição patronal trazer efeitos financeiros, fiscais e atuariais negativos para gestão do RPPS, mas uma vez aprovada a lei municipal a medida está revestida de todos os aspectos legais.

Mesmo cheios de boa intenção, argumentos de zelo e preservação do RPPS não mudam regras e princípios orçamentários. Nesse sentido, o princípio da anualidade orçamentária é suficiente para embasar que não se deve empenhar a despesa cujo pagamento está previsto para exercícios futuros.

Por fim, nessa temática do empenho da despesa, não se vislumbra qual seria o ganho para o RPPS o simples fato da despesa estar empenhada e não acontecer o recolhimento da contribuição patronal, pois os impactos financeiros, fiscais e atuariais nos fundos de previdência decorreriam da falta de recursos arrecadados e não do empenho da despesa por parte do devedor. Em outras palavras, o empenho da despesa não vai melhorar o resultado atuarial, nem o resultado financeiro e não garantirá recursos para pagamento da folha de inativos.

Se o objetivo dos defensores do empenho da despesa é desincentivar que o gestor tome a decisão de suspender os recolhimentos, que encontremos outra forma que garanta o respeito aos princípios orçamentários.

 

Paulo Henrique Feijó¹

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¹ Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi – Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Volume 2: Suprimento de Fundos; Entendendo Resultados Fiscais; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Patrimonial Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Representante do CFC na Associação Interamericana de Contabilidade (AIC).

² Artigo 24 da lei Complementar n° 141.

³ Decreto Federal n° 93.872/1986, artigo 27.

31 de agosto de 2020

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