Nos tempos de crise a cultura brasileira é de propor a criação de fundos como solução para os problemas, como se muitas vezes a vinculação de recursos fosse a solução de todos os males do mundo. Talvez por isso o Brasil tenha um dos orçamentos mais vinculados do mundo, isso se não for o campeão mundial de vinculações. Aqui já existem receitas em que a soma das destinações alcança mais de 100% e há que se fazer regra de três para encontrar o percentual correto.
Acontece que esse processo se aperfeiçoa e possui uma criatividade infinita. A mais recente que tive contato foi a de criação do Fundo Anticíclico de Combate à Pobreza (FACP), no nível federal, com a finalidade de alcançar o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Nada mais natural do que um propósito meritório para criação de um fundo. Quase todos são assim.!! Bom, mas qual a novidade dessa proposta? É que uma das fontes de recursos do fundo seria o superávit primário da União, obviamente quando houver, pois a situação é de déficit primário a 6 anos e perspectiva de que continue ainda por alguns anos.
Assim, a grande questão é: Superávit primário pode ser receita de fundo? Existe base conceitual para isso? Trata-se de equívoco conceitual básico de como funciona a apuração de resultados fiscais, pois superávit primário não deve constituir receita do fundo. A exposição de motivos ressalta que o referido fundo seria constituído com aportes da União calculados de acordo com o superávit primário apurado antes da elaboração da Lei Orçamentária Anual, até que seja atingido um determinado patamar que assegure o custeio dessas políticas até o momento em que a crise for resolvida, por isso o aspecto anticíclico do fundo. Reforça ainda que “sempre que houver superávit primário por parte da União, ela ficará obrigada a destinar uma parte dele ao fundo, para que ele possa ser dotado de recursos para atender às suas finalidades”.
É preciso ressaltar que, resultado primário é calculado pelo confronto das receitas e despesas primárias num determinado período, apurado sob a ótica de caixa. Portanto, pode-se apurar superávit primário e não haver sobra de caixa, por exemplo, se um governo arrecada R$ 1.000 de tributos e paga R$ 600 de despesas com pessoal, R$ 300 com manutenção e R$ 100 de serviço da dívida (juros e amortização) terá um superávit primário de R$ 100, pois arrecadou R$ 1.000 de receitas primárias e gastou R$ 900 de despesas primárias (600+300), contudo não sobrou nada no caixa. Isso acontece porque a metodologia de apuração de resultado primário se utiliza estritamente da ótica de caixa
(recebimentos e pagamentos). Também pode haver “sobras” de superávit primário que estejam comprometidas com passivos que serão pagos no exercício seguinte, por exemplo, fornecedores a pagar, portanto não estão livres para serem utilizadas.
Superávit primário não é sobra de receita que fica à disposição no caixa do governo. Mesmo se houvesse superávit primário que estivesse sem comprometimento, ou seja, saldos de caixa livres, a utilização no exercício seguinte para financiar despesas primárias terá impacto fiscal, pois elevará a dívida líquida. Sobra de caixa, mesmo que seja decorrente de arrecadação de receita primária quando utilizada em exercício diverso, segundo a metodologia deixa de ser fonte primária e deve ser classificada como fonte financeira. Logo, se financiar a despesa de aporte/transferência ao fundo, que é uma despesa primária, terá impacto negativo no resultado fiscal, o que contraria o objetivo do fundo de garantir a responsabilidade fiscal.
Além desse aspecto conceitual é importante enfatizar que a criação de mais um fundo vai na contramão das iniciativas que estão hoje no parlamento. A PEC 187 em discussão no Senado visa diminuir a quantidade de fundos e junta a outras PECs que têm por objetivo diminuir o nível de vinculação do orçamento. Criação de fundos é prática recorrente na cultura orçamentária brasileira que contraria o princípio internacional da não afetação das receitas (não vinculação), impedindo que parcela expressiva da receita pública não possa ser livremente programada, a cada ano. Sob a ótica das funções clássicas do orçamento limita fortemente a função alocativa.
Paulo Henrique Feijó²
Professor, Escritor e Contador
____________
¹ O conteúdo deste trabalho é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião de instituições e grupos com as quais tem relação profissional.
² Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi – Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Volume 2: Suprimento de Fundos; Entendendo Resultados Fiscais; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Patrimonial Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Representante do CFC na Associação Interamericana de Contabilidade (AIC).
0 respostas em "Superávit Primário pode ser Fonte de Recursos para Fundos¹"