Sobre Regras Ficais: Uma Contribuição para o Debate

Claudiano Manoel de Albuquerque
Paulo Henrique Feijó

Logo depois de deixar a gestão do tesouro britânico, Winston Churchill mencionou que um ministro das finanças que sabe dizer “não” a todo plano destinado a melhorar coisas à custa de recursos públicos é, necessariamente, o ator mais destacado em qualquer Gabinete. Segundo ele, o ministro deve contar com forte apoio do chefe do governo ou, do contrário, se torna vulnerável e facilmente perde as condições políticas para manter-se no cargo. É uma visão em que o controle fiscal é tratado quase como um assunto pessoal, concentrado na figura do ministro e de algumas pessoas à sua volta.

No volume 2 de nosso livro “Gestão de Finanças Públicas” mostramos como as inovações da gestão fiscal, nas últimas décadas, permitiram que a responsabilidade por dizer “não” às demandas que impõem riscos fiscais não mais esteja restrita às autoridades da área fazendária. O assunto foi institucionalizado e neste momento o debate a respeito das regras fiscais alcança um grande conjunto de atores, envolvendo políticos de diferentes partidos, técnicos da equipe de transição de governo, do Congresso Nacional e do Poder Executivo, e muitos economistas do mundo acadêmico e do setor financeiro. É um assunto diário na imprensa.

No referido livro definimos que as regras fiscais constituem instrumentos adotados com o objetivo de que os responsáveis pela formulação e gestão das finanças públicas possam dizer “não” ante pressões por aumento de gastos. As regras fiscais impõem restrições duradouras sobre agregados orçamentários, como a receita, a despesa, o resultado orçamentário, os resultados fiscais e a dívida pública. Elas contribuem para ancorar as expectativas dos agentes econômicos quanto ao futuro da política fiscal e das contas públicas. Por isso, são também conhecidas como “âncoras fiscais”, pois representam a garantia de que o gestor público terá como resistir a pressões para atender demandas que ultrapassem limites sustentáveis.

O estabelecimento e a implementação de regras fiscais apresentam componentes políticos e técnicos. As regras fiscais devem ser eficientes para controlar as decisões sobre o quanto gastar e como financiar os gastos. São decisões eminentemente políticas, embora devam ser respaldadas por estudos técnicos. Assim, o objetivo das regras é constranger o político, garantir que suas decisões sejam pautadas por avaliações quanto aos respectivos impactos macroeconômicos. Tal constrangimento não se limita a regras legais e sancionatórias. Considerando que o político se pauta pela opinião pública, suas decisões são afetadas pelo debate público sobre as matérias em apreciação. As regras fiscais contribuem para gerar um ambiente de maior transparência e discussão esclarecida sobre os benefícios e, principalmente, sobre os riscos das políticas fiscais adotadas, de maneira que a decisão política seja beneficiada por tais avaliações. Neste aspecto, certamente a Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil trouxe contribuição relevante.

Se trata de controlar a decisão de gasto, que obviamente não pode ser ilimitado. Resta saber em quais momentos se controla a decisão de gasto? O primeiro, e mais relevante, é o da criação das “entidades de custo” e das políticas públicas que impõem custos ao governo. Uma entidade de custo é usualmente uma unidade administrativa, que em sentido amplo, pode se referir a um ministério, um tribunal, uma empresa, uma autarquia, uma secretaria ou departamento desses órgãos. A criação de uma unidade administrativa, vem sempre acompanhada de um custo correspondente. Além das estruturas de custo existentes, determinadas políticas públicas impõem despesas permanentes, sob a forma de gastos obrigatórios (saúde e educação, por exemplo) ou de difícil contenção (salários, benefícios sociais).

O segundo momento relevante para o controle do gasto é o do planejamento, em especial o da elaboração do orçamento, que tem como primeiro limitador para a expansão dos gastos a capacidade de arrecadação. Por isso é relevante que o orçamento seja realista. Isto significa que deve ser compatível com as regras fiscais estabelecidas; as estimativas de receita devem ser realizadas com base em parâmetros que garantam que os montantes previstos efetivamente ingressem nos cofres do governo, o que requer adotar parâmetros prudentes; as despesas autorizadas devem cobrir todas as obrigações que o governo tenha que pagar em função dos compromissos assumidos, em especial os gastos impostos pela legislação ou por contratos firmados.

Um orçamento realista pode ser executado integralmente sem qualquer risco ao cumprimento das metas fiscais, pois foi elaborado considerando as referidas metas. Neste caso, deixariam de ser necessários os contingenciamentos, as emendas impositivas e a identificação dos parlamentares propositores de cada emenda.

O terceiro momento para o controle do gasto é o da execução do orçamento. Fazer o controle nesta etapa é pouco eficiente, devido ao fato de que grande parte das decisões de gasto já foram tomadas e não mais podem ser revertidas. Os centros de custos se encontram instalados, gerando despesas, e as obrigações legais se encontram em vigor, gerando contas a pagar, previstas ou não no orçamento.

O recente debate sobre regras fiscais no Brasil permite evidenciar dois fatos: em primeiro lugar, as regras fiscais existentes já não são eficientes para controlar as decisões de gasto (especialmente o crescimento das despesas obrigatórias, gradativamente excluídas do teto de gasto); em segundo lugar, o ambiente político não favorece a contenção dos gastos.

Ao mesmo tempo em que o componente político das regras fiscais se mostra fragilizado, propostas para instituir novas regras vêm sendo elaboradas no âmbito técnico. O componente técnico das regras fiscais trata de aspectos como os procedimentos operacionais, os indicadores, os cálculos e a elaboração de demonstrações para acompanhamento da execução da política e dos resultados fiscais. Esse componente somente alcança o cálculo do espaço fiscal disponível para a acomodação das despesas. Permite dar transparência à trajetória da dívida pública a partir da execução da política fiscal, mas a eficácia dessa política para a manutenção de qualquer trajetória preliminarmente traçada é muito limitada. De fato, o processo decisório ocorre no âmbito político, onde sempre são encontrados atalhos para a acomodação das pressões por gastos adicionais.

O que move as iniciativas políticas sobre as regras fiscais no Brasil, neste momento, é fundamentalmente a acomodação de gastos adicionais não incluídos no projeto da lei orçamentária para 2023. Se pode incluir nesta prescrição o debate sobre a moderna teoria da moeda (MTM). Por meio desta teoria, se defende que um governo que emite a própria moeda não sofre restrições para realizar pagamentos nessa moeda e pode se financiar a baixas taxas de juro. Adicionalmente, se o custo da dívida for mais baixo que o crescimento da economia, a relação dívida/PIB não crescerá. Neste contexto, a emissão de dívida poderia ser favorável à realização de mais despesas, contribuindo para um crescimento econômico mais acelerado.

Algumas restrições, no entanto, são reconhecidas inclusive por aqueles mais entusiasmados com a aplicação da teoria. A primeira é que a expansão da demanda é limitada pela capacidade da economia em absorvê-la. Há aumentos de demanda sobre os quais o setor produtivo responde com aumento de oferta a curto prazo. Mas há também aqueles que geram consumo imediato sem alavancar a produção. Se há ociosidade na economia, ou recursos em moeda estrangeira para suportar um aumento da importação, a demanda adicional contribui para ampliar a oferta a curto prazo e haverá um efeito positivo sobre o crescimento econômico.

No entanto, se não há ociosidade na economia, nem disponibilidade de moeda estrangeira para pagar pela importação dos bens e serviços necessários ao atendimento do novo nível de demanda, haverá pressão inflacionária. Será então necessário adotar medidas para aumentar a produtividade interna e, se possível, ampliar também as exportações. O aumento da produtividade pode ser alcançado, por exemplo, mediante investimentos em infraestrutura e incorporação de tecnologias mais produtivas. A atração de investimentos externos também contribui nesse sentido. A associação entre investimentos externos e ampliação das exportações seguramente foram cruciais para o crescimento chinês nas últimas décadas.

Neste aspecto, outra restrição reconhecida é que a qualidade do gasto é relevante, por isso a ampliação da despesa deveria ser acompanhada de uma revisão dos periódica dos principais gastos do governo. Nesse sentido é importante observar que se o gasto público contribui para o aumento da produção e das exportações no curto prazo, a expansão da demanda será compensada pela expansão da oferta. Caso contrário, restará a ampliação da demanda sem a correspondente ampliação da oferta, gerando a pressão inflacionária.

Não são somente os investimentos em infraestrutura que contribuem para o crescimento econômico. Nas últimas décadas, gastos correntes de apoio à agropecuária seguramente foram relevantes para o crescimento do setor. Uma política de atração de imigrantes qualificados e geração de emprego para eles poderia gerar crescimento econômico em curtíssimo prazo, sem demandar despesas de capital. Alguns programas sociais podem contribuir para a ampliação da oferta de produtos, em lugar de somente ampliar a demanda. Por sua vez, investimentos em infraestruturas que levam anos até entrar em produção podem, pelo menos a curto prazo, contribuir mais para ampliar a demanda agregada e a pressão inflacionária que para a oferta de bens e serviços.

Assim, há oportunidades e riscos que devem ser avaliados com vistas à escolha sobre o volume da despesa pública e suas fontes de financiamento. Um volume de despesas bem dimensionado, associado com o desenho de políticas públicas que efetivamente promovam a redução das desigualdades sociais e o crescimento econômico, é tão relevante quanto a manutenção do equilíbrio fiscal. É relevante ter em conta que a ampliação do gasto público pode contribuir no curto prazo para o alcance dos dois objetivos, mas se tal ampliação ocasionar o desequilíbrio das finanças públicas, o efeito será o contrário do pretendido. Assim, o volume da despesa pode ser maior ou menor que o atual, mas é a qualidade do gasto que vai garantir o efetivo alcance dos objetivos.

Diferentes critérios podem ser adotados para o cálculo e a definição do espaço fiscal disponível para acomodar as despesas públicas. Porém, qualquer que seja o critério, o resultado de sua aplicação será a definição de um determinado “teto de gastos”, ou seja, o espaço fiscal disponível para a execução da despesa pública. Assim, qualquer que seja o ponto de partida, haverá um momento em que o nível de gastos obrigatórios ou de difícil compressão estará muito próximo do “teto” e não haverá espaço para acomodar novas despesas. Afinal, não se pode conceber que o governo possa gastar mais do que arrecada de forma continuada e por tempo indefinido. Lembrando que justificativas meritórias para realizar os chamados gastos sociais sempre existirão.

A regra de resultado primário permite que o “teto” de gasto seja variável. A cada ano o valor máximo da despesa primária será aquele que se compatibilizar com a meta de resultado e o montante das receitas primárias. É um modelo cuja aplicação no Brasil resultou em orçamentos procíclicos e não foi capaz de conter o crescimento das despesas obrigatórias. A principal variável de ajuste da despesa foram os investimentos públicos, reduzidos à medida que as despesas obrigatórias cresceram.

A regra do “teto de gastos”, introduzida pela EC 95/2016, instituiu um teto fixo que também não foi eficaz para conter o crescimento das despesas obrigatórias. O ajuste da despesa continuou restringindo os investimentos públicos e, quanto aos gastos obrigatórios, se estendeu às despesas de pessoal, contraindo a reposição de quadros e a correção dos salários dos servidores públicos. Mesmo assim, se constata que o teto já não acomoda o montante integral da despesa primária que, no âmbito político, é tida como essencial.

O Brasil dispõe de um excelente corpo técnico que estuda estes temas há anos e que vem preparando propostas para o desenho de um novo modelo de gestão fiscal. Algumas das recentes propostas sobre a matéria tratam de extinguir o teto fixo, com a manutenção da regra de resultado primário e constituição de um teto variável cujo cálculo seria referenciado pela trajetória de crescimento da dívida. Para evitar que esse cálculo seja influenciado por avaliações subjetivas, que possam ser distorcidas intencionalmente para favorecer a acomodação de despesas adicionais, a STN indica a hipótese de realizá-lo com base no crescimento verificado nos anos mais recentes.

Adicionalmente, para evitar o caráter procíclico dos orçamentos, há recomendações de que o a base de cálculo do teto cubra alguns anos adiante e não somente o período de vigência do orçamento anual. Finalmente, tendo em conta a flutuação dos níveis de receitas em diferentes anos, vem sendo mencionada a possível constituição de fundo de reserva (ou de estabilização) onde seriam depositados os excedentes de arrecadação de cada ano. Esta é uma proposta que contribui para evitar o crescimento continuado da despesa e para garantir recursos para cobrir déficits de arrecadação em anos de atividade econômica reduzida. São também mencionadas as práticas de “spending review”, destinadas a reavaliar periodicamente e, se for o caso, extinguir estruturas administrativas e programas pouco eficientes.

Todas estas propostas são fundamentadas em estudos de experiências já adotadas em outros países, muitas delas com amplo sucesso. Constitui um conjunto extenso de mudanças cuja aprovação e implementação, segundo reconhecem os técnicos que vêm tratando da matéria, depende muito das condições políticas, institucionais, jurídicas e federativas que acabam por determinar o gasto público.

É importante destacar também que o tema não se esgota com a instituição das regras fiscais. Igualmente relevantes são as regras de implementação. Afinal, o objetivo maior é institucionalizar o processo decisório. Em um regime republicano, dizer “não” aos planos destinados a melhorar as coisas à custa de recursos públicos, como mencionado por Churchill, não deve ser responsabilidade pessoal de um só agente público, ou alguns. Assim, a legislação deve detalhar também os processos de implementação, estabelecendo mecanismos de governança que evitem os riscos inerentes aos processos nos quais as decisões são pessoais. Vale a pena mencionar alguns aspectos:

  • O mais relevante nas regras fiscais é tornar transparente os impactos das decisões de hoje sobre o futuro das finanças públicas, incentivar o debate e a avaliação sobre os riscos fiscais inerentes a cada proposta de gasto, e permitir que tais avaliações influenciem as decisões.
  • O alcance das metas fiscais deve ser realizado por meio da elaboração de orçamentos compatíveis com elas. Regras de implementação que imponham ajustes periódicos no montante da despesa a ser executada resultam em perda da efetividade do orçamento como instrumento de planejamento. As regras que permitam estabelecer tetos de gasto para horizonte temporal mais amplo podem eliminar a necessidade de ajustes frequentes (contingenciamentos) ao longo de cada um dos exercícios.
  • É importante superar a atual prática de contingenciamento anual das despesas orçamentárias. Este modelo incentiva a preparação de orçamentos irrealistas e a prática de “rent seeking” ou seja, a busca de privilégios e benefícios por meio da influência política durante a execução do orçamento. Se não for possível eliminar completamente a prática atual, seria salutar pelo menos adotar regra que evite a necessidade de contingenciamento diante de variações irrelevantes da arrecadação, principalmente aquelas que fiquem abaixo das margens de erro das estimativas.
  • As regras da dívida devem ser observadas na aprovação do orçamento e de seus ajustes. É importante esclarecer que uma regra de dívida não trata do montante da dívida que pode ser emitida, mas dos montantes e das fontes de financiamento das despesas. Uma vez que o orçamento indique que determinada despesa será financiada por meio de fontes decorrentes de operações de crédito, deixar de emitir a dívida necessária ao correspondente pagamento somente tem como resultado a geração de pagamentos em atraso. O ajuste que for necessário, para cumprimento da meta fiscal, deverá ser realizado por meio de modificação orçamentária, e não do racionamento de caixa.
  • Admitindo-se que a meta de resultado poderá indicar crescimento da dívida, e que parte desse crescimento poderá ser direcionado ao financiamento de despesas correntes, a regra de ouro deveria ser extinta.

Por fim, vale ressaltar que nenhuma regra fiscal conterá na prática um governo que não tenha por princípio agir com responsabilidade fiscal, que na prática significa cuidar não só do equilíbrio entre receitas e despesas no presente, mas num horizonte intertemporal mitigar os riscos de que decisões no presente comprometam o equilíbrio fiscal ao longo do tempo, evitando também desequilíbrios intergeracionais, onde a geração do futuro paga a conta gerada por decisões sem sustentabilidade fiscal tomadas no passado.

Referências

ALBUQUERQUE, Claudiano Manoel; MEDEIROS, Márcio Bastos; FEIJÓ, Paulo Henrique. Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal. Volume 2 – Administração Financeira e Orçamentária – Gestão Fiscal. 4ª.ed. Brasília: Gestão Pública, 2022.

2 de março de 2023

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