Receitas de Capital podem financiar despesas correntes?

No Balanço Orçamentário quando houver déficit de capital, significará a ocorrência de capitalização de recursos, pois parte do superávit corrente estará financiando as despesas de capital. Quando houver superávit de capital, significará que há receitas de capital financiando  despesas correntes e normalmente se diz que esta é uma situação de descapitalização.

Cabe ressaltar que muitos propagam que receitas de capital não podem financiar despesas corrrentes, o que não é  verdade. A afirmação de que receitas de capital não podem financiar despesas correntes decorre, em geral, de interpretação equivocada ou restrita da chamada Regra de Ouro  constitucional (CF, art. 167, inciso III) e do que chamamos de Regra de Ouro da LRF (art. 44). Para uma análise pormenorizada das regras de utilização das receitas de capital é preciso primeiro identificá-las. De acordo com a Lei nº 4.320/1964, são receitas de capital:

a) Operações de crédito – Trata-se do ingresso proveniente da colocação de títulos públicos ou da contratação de empréstimos e financiamentos junto a entidades estatais ou privadas.

b) Alienação de bens – É o ingresso proveniente da alienação de componentes do ativo permanente.

c) Amortização de empréstimos – É o ingresso proveniente da amortização de empréstimo anteriormente concedido pelo governo a pessoas ou a outros governos. Ou seja, é o valor do recebimento de parcelas de empréstimos ou financiamentos concedidos em títulos ou contratos.

d) Transferências de capital – São os ingressos provenientes de outros entes ou entidades referentes a recursos pertencentes ao ente ou entidade recebedora ou ao ente ou entidade transferidora, efetivados mediante condições preestabelecidas ou mesmo sem qualquer exigência, desde que o objetivo seja a aplicação em despesas de capital.

e) Outras receitas de capital – São os ingressos provenientes de outras origens não classificáveis nas subcategorias econômicas anteriores.

Receita de Operações de Crédito e a Regra de Ouro Constitucional

A Constituição Federal de 1988 adota uma visão realista diante do déficit orçamentário. Nas classificações orçamentárias brasileiras, é possível verificar que o déficit pode aparecer embutido nas contas públicas por meio das contas denominadas Operações de Crédito. Essas operações acabam se transformando em operações de longo prazo com a colocação de títulos e obrigações emitidos pelos Tesouros das três esferas.

Imagine um orçamento hipotético de determinado ente da Federação que tivesse a seguinte estrutura:

Situação I

RECEITAS

DESPESAS

Correntes

 

Correntes

1.000

Impostos

Pessoal

Taxas

Juros da Dívida

Contribuições

Outras Despesas Correntes

1.000

Capital

1.000

Capital

Alienação de Bens   Investimento

Operações de Crédito

1.000

Inversão Financeira

Transferências de Capital

 

Amortização da Dívida

     

Total

1.000

Total

1.000

Observe que nessa situação o ente federado estaria respeitando o princípio do equilíbrio, pois suas receitas seriam iguais às despesas. No entanto, ao analisarmos as rubricas orçamentárias que compõem o referido orçamento, verificamos que o ente está financiando todas as suas despesas correntes por meio de endividamento, ou seja, com receitas de operações de crédito. Para evitar tais operações, a CF/1988, no artigo 167, inciso III estabeleceu um limite para esse endividamento ao restringir as operações de crédito ao montante das despesas de capital (regra de ouro).

Art. 167. São vedados:

[…]

III – a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta;

No exemplo anterior, as operações de crédito somam $ 1.000 e o montante das despesas de capital é nulo. Assim, caso um determinado ente propusesse um orçamento nos moldes da situação I, este seria considerado inconstitucional, pois estaria violando a regra de ouro estabelecida na Constituição.

É importante salientar que a regra de ouro não veda a utilização de receitas oriundas de operações de crédito para a realização de despesas correntes, mas determina que o montante das operações de crédito não pode exceder o montante das despesas de capital. Nesse sentido, poderíamos ter a seguinte situação:

Situação II

RECEITAS

DESPESAS

Correntes

2.000

Correntes

1.900

   Impostos

900

Pessoal

900

   Taxas

300

Juros da Dívida

   Contribuições

800

Outras Despesas Correntes

1.000

Capital

1.000

Capital

1.100

Alienação de Bens   Investimento

300

Operações de Crédito

1.000

Inversão Financeira

Transferências de Capital

 

Amortização da Dívida

800

     

Total

3.000

Total

3.000

Nessa situação, o uso da receita de operações de crédito para a realização de outras despesas correntes foi compensada pela utilização de receitas de taxas e contribuições para despesas de investimento e amortização da dívida, respectivamente. O montante das despesas de capital ($ 1.100) é maior do que as receitas de operações de crédito ($ 1.000). Portanto, o ente estaria cumprindo a regra de ouro, apesar de aplicar receitas de operações de crédito em despesas correntes.

Além de demonstrar o respeito à regra de ouro quando da elaboração da proposta orçamentária, o ente federado deverá comprovar o cumprimento, em cada exercício financeiro, dos valores efetivamente realizados mediante apuração das operações de crédito e das despesas de capital, conforme os critérios definidos no art. 32, § 3º, da LRF, que determina, in verbis:

§ 3º Para fins do disposto no inciso V do § 1º, considerar-se-á, em cada exercício financeiro, o total dos recursos de operações de crédito nele ingressados e o das despesas de capital executadas, observado o seguinte:

I – não serão computadas nas despesas de capital as realizadas sob a forma de empréstimo ou financiamento a contribuinte, com o intuito de promover incentivo fiscal, tendo por base tributo de competência do ente da Federação, se resultar a diminuição, direta ou indireta, do ônus deste;

II – se o empréstimo ou financiamento a que se refere o inciso I for concedido por instituição financeira controlada pelo ente da Federação, o valor da operação será deduzido das despesas de capital;

Em resumo, o ente da Federação deve se preocupar com o cumprimento da regra de ouro quando da elaboração do orçamento e ao final do exercício, sempre confrontando as receitas previstas e realizadas, relativas às operações de crédito, com o total das despesas de capital, também previstas e realizadas no exercício.

Cabe observar que a única vedação de se utilizar receitas de operações de crédito para financiar despesas correntes está na LRF, mais precisamente na conjugação da interpretação dos artigos 35 e 36. Primeiramente o artigo 36 veda que o ente realize operação de crédito com instituição financeira que esteja sob seu controle:

Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.

Parágrafo único. O disposto no caput não proíbe instituição financeira controlada de adquirir, no mercado, títulos da dívida pública para atender investimento de seus clientes, ou títulos da dívida de emissão da União para aplicação de recursos próprios.

Assim, por exemplo, o Governo do Distrito Federal não pode pedir emprestado ao Banco Regional de Brasília (BRB), nem o Governo Federal pode fazer operações de crédito, por exemplo, com o Banco do Brasil ou a Caixa Econômica Federal. O artigo 35 da LRF proíbe operação de crédito entre entes da Federação, no entanto, em seu parágrafo primeiro possibilita que um ente obtenha empréstimo em outra instituição financeira estatal controlada por outro ente. Por exemplo, o Governo do Distrito Federal pode obter empréstimo junto ao Banco do Brasil ou outra instituição financeira federal ou, até mesmo, de outras esferas, como o Banco do Rio Grande do Sul. Entretanto, o inciso I do referido parágrafo restringe a utilização dos recursos à despesa de capital:

Art. 35. É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da Federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente.

§ 1º Excetuam-se da vedação a que se refere o caput as operações entre instituição financeira estatal e outro ente da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, que não se destinem a:

I – financiar, direta ou indiretamente, despesas correntes;

II – refinanciar dívidas não contraídas junto à própria instituição concedente.

§ 2º O disposto no caput não impede Estados e Municípios de comprar títulos da dívida da União como aplicação de suas disponibilidades.

Há que se observar que não há proibição legal para o ente pegar empréstimo em banco privado ou mesmo em organismo internacional para financiar despesas correntes, pois a vedação do parágrafo primeiro do artigo 35 é apenas para empréstimo com instituição financeira estatal. Porém, a Constituição Federal não permite a concessão de empréstimos para pagamento de pessoal ativo, inativo e pensionistas:

Art. 167. São vedados:

[…]

X – a transferência voluntária de recursos e a concessão de empréstimos, inclusive por antecipação de receita, pelos Governos Federal e Estaduais e suas instituições financeiras, para pagamento de despesas com pessoal ativo, inativo e pensionista, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (Grifo nosso)

Logo se verifica pelo exposto que há possibilidades de utilização de receitas de operações de crédito para financiar despesas correntes, desde que o montante não ultrapasse as despesas de capital. No entanto, o Poder Legislativo pode autorizar créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, em montante superior, desde que aprovados por maioria absoluta.

Receita de Alienação de Bens e a Regra de Ouro da LRF

Vimos que a regra de ouro estabelecida na Constituição visa a impedir, nos montantes globais do orçamento, que receitas de operações de crédito financiem despesas correntes. Porém, não impede que essas receitas sejam alocadas para a realização de despesas correntes, desde que o ente compense esta operação alocando receitas correntes para o financiamento de despesas de capital.

No entanto, a Lei de Responsabilidade Fiscal trouxe importante vedação relacionada às receitas originárias de alienação de bens quando estabelece no artigo 44:

Art. 44. É vedada a aplicação da receita de capital derivada da alienação de bens e direitos que integram o patrimônio público para o financiamento de despesa corrente, salvo se destinada por lei aos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos.

Assim, a LRF proíbe a realização de despesas correntes com recursos de alienação de bens. Tal princípio objetiva a preservação do patrimônio público, no sentido de que o mesmo não seja “consumido” para financiar despesas correntes ou de manutenção do próprio governo. Na década de 1990, portanto antes dessa regra, houve uma grande discussão no âmbito do Governo Federal quanto à utilização dos recursos de privatização das empresas estatais. Alguns defendiam que fossem aplicados na área social, outros em investimentos e um terceiro grupo para abatimento da dívida pública. A partir da regra trazida pela LRF, os recursos de alienação de bens somente podem ser utilizados para investimentos, inversões financeiras e amortização de dívidas. A única exceção é o caso em que lei destine os recursos para os regimes de previdência.

Receita de Amortização de Empréstimos

De maneira geral, qualquer governo, desde que lei autorize, poderá conceder empréstimos a pessoas ou a outros governos. Posteriormente, quando do recebimento do pagamento das parcelas do empréstimos ou financiamentos concedidos em títulos ou contratos, por parte do credor, haverá ingresso de recursos que deverá ser reconhecido como receita de capital, pois na essência o ente recebedor estará baixando um crédito a receber em contrapartida do ingressso no caixa. Essa receita poderá ser utilizada para despesas correntes? A menos que a lei que instituiu o programa de financiamento limite a aplicação do retorno dos empréstimos concedidos, esses recursos poderão financiar despesas correntes. Vale ressaltar que no Brasil o empréstimo entre governos tem limitações impostas pela LRF, como comentado quando tratamos das operações de crédito e a regra de ouro.

Transferências de Capital

Será classificado como transferência de capital o ingresso de recursos provenientes de outros entes ou entidades desde que o objetivo seja a aplicação em despesas de capital; portanto, nesse caso não há possibilidade de se financiar despesas correntes.

Outras Receitas de Capital

São exemplos de outras receitas de capital:

a) Integralização do Capital Social – Recursos recebidos pelas empresas públicas ou sociedades de economia mista como participação em seu capital social.

b) Resultado do Banco Central do Brasil (Bacen) – Receitas decorrentes dos resultados positivos do Bacen, apurados em seus balanços semestrais. Os recursos destinam-se à amortização da dívida pública federal.

c) Remuneração das Disponibilidades do Tesouro Nacional – Valor da remuneração do saldo diário dos depósitos da União existentes no Bacen, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

d) Receita da Dívida Ativa Proveniente de Amortização de Empréstimos e Financiamentos – Montante da arrecadação com receita da dívida ativa proveniente de amortização de empréstimos e financiamentos.

Com exceção da receita decorrente do Resultado do Banco Central, que obrigatoriamente deve ser utilizada para amortização da dívida que é uma despesa de capital, as demais podem ser destinadas para despesas correntes, a menos que lei específica proíba esta aplicação. Uma observação interessante é a de que algumas dessas receitas são usadas para pagar juros da dívida, que são despesas correntes. Como exemplo, no âmbito da União é muito comum alocar receitas da remuneração das disponibilidades do Tesouro Nacional para pagamento dos juros da dívida.

Paulo Henrique Feijó:
Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília (UNB) e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Curso de Siafi: Volume 2 – Suprimento de Fundos; Entendendo o Plano de Contas Aplicado ao Setor Público (PCASP); Entendendo Resultados Fiscais: Teoria e Prática de Resultados Primário e Nominal; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público: Teoria e Prática de Controle da Aprovação e Execução do Orçamento com base no PCASP. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Professor das disciplina de Administração Financeira e Orçamentária e Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Desenvolve atividades de administração e aperfeiçoamento das finanças públicas (gestão do caixa, programação e execução financeira, resultados fiscais e contabilidade do setor público), e participa de missões de assistência técnica e de avaliação das finanças no exterior a convite do Fundo Monetário Internacional (FMI).

30 de agosto de 2020

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