1 – A Polêmica: Proposta de Suspender a aplicação da Regra de Ouro
O ano de 2018 começou com a polêmica medida proposta do governo de alterar a Regra de Ouro das finanças públicas prevista na Constituição Federal. Até no Jornal nacional saiu notícia como a transcrita a seguir:
O presidente Michel Temer e aliados estão estudando uma emenda à Constituição para mudar a chamada regra de ouro das contas públicas. Esse dispositivo essencial da responsabilidade fiscal foi adotado para evitar que o governo gaste demais e jogue a conta para o sucessor.
Uma regra que está na Constituição com um objetivo claro: evitar que o governo se endivide para pagar gastos do dia a dia, despesas do funcionamento da máquina pública, como o pagamento dos salários dos funcionários, alugueis, água, luz. O governo pode fazer dívidas, mas para investir em infraestrutura, na melhoria dos serviços como saúde e educação.
…….
Há cinco anos, as despesas aumentam e o governo não consegue economizar nem para pagar os juros da dívida, mesmo com cortes do orçamento, gasta mais do que arrecada. A previsão de déficit em 2018 é de R$ 159 bilhões. As despesas mais pesadas são a Previdência Social e o funcionalismo.
…..
Acendeu o sinal amarelo porque, se a norma constitucional for desrespeitada, o presidente da República incorre em crime de responsabilidade e pode até sofrer um impeachment.
A alternativa que está sendo construída entre governo e Congresso é mudar a Constituição para alterar a regra. O principal ponto é suspender temporariamente a aplicação da regra de ouro. Não se sabe por quanto tempo ainda. Ou seja, um cheque em branco para gastar sem ser responsabilizado.
A proposta que está sendo analisada inclui também medidas para a redução de despesas fixas.
A imprensa, talvez com o intuito de simplificar um assunto técnico e árido para público em geral acaba por não contar toda a história. Assim, além de buscar dissecar os aspectos relacionados com a Regra de Ouro este texto também vai responder: Para descumprir a Regra de Ouro o Governo precisa enviar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC)? A regra de Ouro tem que ser respeitada tanto na elaboração como na execução do orçamento?
2 – Introdução
As determinações da Constituição Federal e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), para a dívida e o endividamento públicos, são aplicadas isoladamente a cada ente da Federação, isto é, à União, a cada Estado, ao Distrito Federal e a cada Município, considerados, em cada um deles o conceito de ente, isto é, os órgãos de todos os Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário, inclusive Ministério Público e Tribunais de Contas – e as respectivas administrações diretas, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes. Essa abrangência deve ser respeitada também na determinação de limites e regras para a dívida e o endividamento.
De maneira geral, no setor público, operação de crédito se caracteriza pelo levantamento de empréstimo pelas entidades da administração pública, com o objetivo de financiar suas ações, podendo ser interna ou externa. Ao realizar uma operação de crédito, ou seja, ao pedir emprestado, a entidade aumenta o seu endividamento. Ao amortizar uma dívida a entidade diminui o seu estoque de dívida. Normalmente existem cobranças de juros incidentes sobre o principal da dívida, que, por sua vez, se incorpora ao estoque da dívida aumentando seu montante. O fato do juro se incorporar ao montante da dívida não o caracteriza como operação de crédito. Portanto, dívida, amortização, operações de crédito e juros são conceitos que não se confundem.
Importante então enfatizar que operação de crédito é um conceito de fluxo e dívida é um conceito de estoque, portanto, o fluxo de operações de crédito alimenta o estoque de dívida.
3 – Conceito Básicos
Para avançar no entendimento do texto é importante conhecer algumas definições trazidas pela LRF[2] em relação à dívida e endividamento, que serão detalhadas mais adiante, bem como outras que se relacionam com os controles de dívida:
Operações de Crédito
Operações de crédito correspondem a compromissos assumidos com credores situados no País ou no exterior, em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.
Despesas de Capital
Para entender a chamada Regra de Ouro constitucional é importante conhecer o conceito de Despesas de Capital que são aquelas despesas orçamentárias efetuadas pela Administração Pública com a intenção de adquirir ou constituir bens de capital (máquinas, veículos, equipamentos, imóveis, entre outros) que enriquecerão o patrimônio público ou serão capazes de gerar novos bens e serviços. Também são despesas de capital aquelas referentes a amortizações de dívidas. Assim, de acordo com o classificador orçamentário as despesas de capital estão divididas em três grupos de natureza da despesa:
A) Investimentos: são despesas relativas ao planejamento e à execução de obras públicas, inclusive as destinadas à aquisição de imóveis necessários à realização destas últimas, bem como para os programas especiais de trabalho, aquisição de instalações, equipamentos e material permanente e a constituição ou aumento do capital social de empresas que não sejam de caráter comercial ou financeiro.
B) Inversões Financeiras: são dotações destinadas a aquisições de imóveis, ou de bens de capital já em utilização na economia; aquisição de títulos representativos do capital de empresas ou entidades de qualquer espécie, já constituídas, quando a operação não importe aumento do capital social; e constituição ou aumento do capital de empresas ou entidades que buscam objetivos comerciais ou financeiros, inclusive operações bancárias ou de seguros.
C) Amortização da Dívida: Despesas com o pagamento e/ou refinanciamento do principal e da atualização monetária ou cambial da dívida pública interna e externa, contratual ou mobiliária.
4 – Regra de Ouro
A Constituição Federal de 1988 adota uma visão realista diante do déficit orçamentário. Nas classificações orçamentárias brasileiras, é possível verificar que o déficit pode aparecer embutido nas contas públicas por meio das contas denominadas Operações de Crédito. Essas operações acabam se transformando em operações de longo prazo com a colocação de títulos e obrigações emitidos pelos tesouros das três esferas de governo.
Imagine um orçamento hipotético de determinado ente da federação que tivesse a seguinte estrutura:
Situação I
RECEITAS |
DESPESAS |
||
Correntes |
|
Correntes |
1.000 |
Impostos |
|
Pessoal |
|
Taxas |
|
Juros da Dívida |
|
Contribuições |
|
Outras Despesas Correntes |
1.000 |
Capital |
1.000 |
Capital |
|
Alienação de Bens | Investimento |
|
|
Operações de Crédito |
1.000 |
Inversão Financeira |
|
Transferências de Capital |
|
Amortização da Dívida |
|
|
|||
Total |
1.000 |
Total |
1.000 |
Art. 167. São vedados
……………..
III – a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta; (Grifo Autor)
No exemplo anterior as operações de crédito somam $1.000 unidades monetárias e o montante das despesas de capital é nulo. Assim, caso um determinado ente propusesse um orçamento nos moldes da situação I, este seria considerado inconstitucional, pois estaria violando a Regra de Ouro estabelecida na Constituição.
É importante salientar que a Regra de Ouro não veda a utilização de receitas oriundas de operações de crédito para realização de despesas correntes, mas determina que o montante das operações de crédito não pode exceder o montante das despesas de capital. Nesse sentido, poderíamos ter a seguinte situação:
Situação II
RECEITAS |
DESPESAS |
||
Correntes |
2.000 |
Correntes |
1.900 |
Impostos |
900 |
Pessoal |
900 |
Taxas |
300 |
Juros da Dívida |
|
Contribuições |
800 |
Outras Despesas Correntes |
1.000 |
Capital |
1.000 |
Capital |
1.100 |
Alienação de Bens | Investimento |
300 |
|
Operações de Crédito |
1.000 |
Inversão Financeira |
|
Transferências de Capital |
|
Amortização da Dívida |
800 |
|
|||
Total |
3.000 |
Total |
3.000 |
Na situação II a utilização da receita de operações de crédito para realização de outras despesas correntes foi compensada pela utilização de receitas de taxas e contribuições para despesas de investimento e amortização da dívida, respectivamente. Nesse caso o montante das despesas de capital ($1.100) é maior do que as receitas de operações de crédito ($1.000). Portanto, o ente estaria cumprindo a Regra de Ouro, apesar de estar aplicando receitas de operações de crédito em despesas correntes.
5 – O Cumprimento da Regra de Ouro
B) No exercício corrente, as receitas de operação de crédito e as despesas de capital constantes da lei orçamentária.
Em resumo, o ente da federação deve se preocupar com o cumprimento da Regra de Ouro quando da elaboração do orçamento e ao final do exercício, sempre confrontando as receitas previstas e realizadas, relativas às operações de crédito, com o total das despesas de capital, também previstas e realizadas respectivamente e em cada exercício.
6 – A “Pseudo” Inconstitucionalidade da Regra de Ouro na LRF
Visando proporcionar maior clareza aos requisitos da Regra de Ouro a LRF, na sua única iniciativa de disciplinar o assunto sem remeter ao texto constitucional, também limitou o montante das operações de crédito quando da elaboração do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), ao estabelecer no § 2o do artigo 12 que:
Art.12…
§ 2o O montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.
No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional alguns artigos da LRF, inclusive este, pois a regra da LRF, que é uma Lei Complementar, foi mais restritiva que a regra constitucional, ferindo o princípio da hierarquia das normas. Assim, se pronunciou o STF:
Em seguida, o Tribunal deferiu a suspensão cautelar do § 2º do art. 12 (“O montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.”), por aparente violação do art. 167, III, da CF, que, embora proíba a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalva as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. Considerou-se que, ao primeiro exame, a Lei Complementar não pode editar norma absoluta, desprezando a ressalva da Constituição Federal. “ (Grifo autor)
Observa-se que, comparando-se o texto da LRF com a redação constitucional[6], não consta do texto da lei complementar a ressalva constitucional: “…ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”. No entanto, esta é só uma aparente inconstitucionalidade de forma literária, pois no âmbito dos conceitos e práticas orçamentários não há nenhuma inconstitucionalidade, pois deve-se observar que a ressalva constitucional trata dos créditos suplementares e especiais, que somente podem ocorrer se existir Lei Orçamentária Anual aprovada. A exigência da LRF é para o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA), como se observa no texto a seguir:
Art. 12, § 2º O montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior ao das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.
Assim, seja pela exigência constitucional ou por determinação da LRF, sempre o PLOA deverá respeitar a Regra de Ouro, ou seja, quando do seu envio ao legislativo as receitas de operações de crédito não poderão ser maiores que as despesas de capital. A ressalva constitucional jamais afetará o PLOA, pois em hipótese nenhuma poderão existir créditos suplementares ou especiais para o PLOA. De qualquer maneira a inconstitucionalidade declarada pelo STF não trouxe nenhum prejuízo aos bons princípios de responsabilidade fiscal dos entes federados, nem à aplicação da Regra de Ouro. No entanto, durante a execução do orçamento as operações de crédito poderão ser superiores às despesas de capital desde que o Poder Legislativo, por maioria absoluta, autorize as despesas por meio de créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa.
7 – Conclusão
A Regra de Ouro trazida pela constituição de 1988 é a primeira regra que tentar conter desequilíbrios fiscais que possam existir quando da elaboração dos orçamentos de cada ente do setor público. Nunca se deve perder de vista que é regra que visa impedir que o ente se endivide além do montante das despesas de capital, portanto, não tem que ser respeitada por cada órgão ou Poder, mas em cada ente (União, estados, DF e municípios).
Como regra geral trata de montantes e não de recursos específicos, assim pode-se utilizar recursos de operações de créditos para financiar despesas correntes sem violar a Regra de Ouro, mas em outro artigo foi demonstrado que a Lei de Responsabilidade Fiscal traz outros limitadores para esse tipo de utilização, como por exemplo, não poder utilizar recursos de operações de crédito obtida junto à instituição financeira estatal para financiar despesa corrente, mas este impedimento legal está no artigo 35 da LRF e seus incisos, portanto não decorre da Regra de Ouro.
Sempre o PLOA deverá respeitar a Regra de Ouro, ou seja, quando do seu envio ao legislativo as receitas de operações de crédito não poderão ser maiores que as despesas de capital. A ressalva constitucional jamais afetará o PLOA, pois em hipótese nenhuma poderão existir créditos suplementares ou especiais para o PLOA. No entanto, durante a execução do orçamento as operações de crédito poderão ser superiores às despesas de capital desde que o Poder Legislativo, por maioria absoluta, autorize as despesas por meio de créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa. Assim, o próprio texto Constitucional já estabelece a possibilidade de não cumprir a Regra de Ouro durante a execução do orçamento, desde que o parlamento aprove.
Assim, somente será necessária a PEC se o governo precisar romper a Regra de Ouro em situações que não se enquadrem na atual ressalva constitucional, como por exemplo, se endividar em montante superior às despesas de capital para despesas que não tenham finalidades precisas ou para enviar o PLOA sem ter que respeitar a regra constitucional.
A falta do entendimento de quais os reais objetivos da Regra de Ouro é que faz com que se crie no âmbito da administração pública “mitos” que se propagam desde os cursinhos preparatórios para concursos até profissionais antigos que militam nas áreas orçamentária e financeira do setor público. Espera-se que com este artigo se tenha um melhor entendimento dos reais propósitos da Regra de Ouro.
Autor: Paulo Henrique Feijó – Professor, Escritor e Contador
Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal, Curso de Siafi: Uma Abordagem Prática da Execução Orçamentária e Financeira, Suprimento de Fundos: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi. Membro do Grupo de Trabalho constituído pelo CFC que elaborou as Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicáveis ao Setor Público, no âmbito do programa de convergência aos padrões internacionais.
______________________________
[1] O conteúdo deste trabalho é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião de instituições e grupos com as quais tem relação profissional.
[2] LRF, Art. 29
[3] LRF, Art. 32, § 3º
[4] A LRF traz algumas exceções de operação de crédito e despesas de capital que não deverão ssr consideradas na regra de ouro.
[5] RSF 43, Art 6º, § 1º
[6] Art. 167. São vedados: III- a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta;