Créditos Extraordinários – Somente para Calamidade Pública?

Parece que a abertura de créditos extraordinários, até a ocorrência da pandemia, não era muito comum nos estados e principalmente nos municípios e tem suscitado várias dúvidas. Uma delas que será tratada aqui é: Créditos extraordinários somente podem ser abertos em caso de calamidade pública?

Ante a pandemia ocasionada por advento da COVID – 19, vários estados e municípios encontram-se em estado de calamidade a partir da publicação de decretos dos chefes do Poder Executivo local, vez que a ocorrência de circunstâncias anômalas, excepcionais e imprevisíveis ocasionaram dificuldades, perturbações e danos às comunidades afetadas.

Em situações como as tais, o ordenamento jurídico permite a adoção de medidas extremas, que se distanciam daquelas previamente planejadas, haja vista a impossibilidade de atendimento às demandas imprevistas no momento da aprovação do orçamento.

Uma dessas medidas é a possibilidade de abertura de créditos extraordinários conforme artigo 167, § 3º, da Constituição Federal:

“Art. 167. (…)

§ 3º A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.” (grifos nossos)

No mesmo sentido, o artigo 41, III, da Lei nº 4.320/1964 estabelece que:

“Art. 41. Os créditos adicionais classificam-se em:

(…)

III – extraordinários, os destinados a despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública.” (grifos nossos)

Para essa análise primeiramente considera-se que o final do texto constitucional (artigo 167, § 3º): “…como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública…” tem caráter exemplificativo e não exaustivo, não havendo impedimento para abertura de crédito extraordinário para outras despesas urgentes e imprevisíveis que não as citadas no texto.

Contudo, a abertura de crédito extraordinário por meio de decreto do chefe do executivo, conforme prevê a Lei nº 4.320/1964, se destina a despesas que preencham os requisitos de imprevisibilidade e urgência delimitados semanticamente pelo texto constitucional como equiparáveis às existentes em situações “decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”, conforme estabelecido pela Constituição Federal no art. 167, § 3º.

Nesse sentido Supremo Tribunal Federal asseverou a necessidade de atendimento aos requisitos constitucionais da urgência e da imprevisibilidade para abertura de crédito extraordinário, por meio da Medida Cautelar da ADI 4049-DF, conforme o disposto no art. 167, §3º, da Constituição da República:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 402, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2007, CONVERTIDA NA LEI Nº 11.656, DE 16 DE ABRIL DE 2008. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS DA IMPREVISIBILIDADE E DA URGÊNCIA (§ 3º DO ART. 167 DA CF), CONCOMITANTEMENTE. (…) 4. A abertura de crédito extraordinário para pagamento de despesas de simples custeio e investimentos triviais, que evidentemente não se caracterizam pela imprevisibilidade e urgência, viola o § 3º do art. 167 da Constituição Federal. Violação que alcança o inciso V do mesmo artigo, na medida em que o ato normativo adversado vem a categorizar como de natureza extraordinária crédito que, em verdade, não passa de especial, ou suplementar. 5. Medida cautelar deferida. (ADI 4049 MC/DF. Relatora: Min. Carlos Britto. Julgamento: 05/11/2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicado em 08/05/2009)

Infere-se, pois, que a abertura de crédito extraordinário pelos entes em situação de calamidade pública atende aos requisitos normativos expostos, haja vista a existência de despesas urgentes, não previstas nos orçamentos dos e entes. Entretanto, poderia um município em situação de emergência que é uma situação anterior ao estado de calamidade pública, se valer de créditos extraordinários. Sim, pois o que deve fundamentar o crédito extraordinário são três requisitos: relevância, urgência e imprevisibilidade. Assim, a situação de emergência mesmo sendo de uma gradação inferior à calamidade, é equiparável e pode ensejar, em algumas ocasiões, medidas urgentes e imprevisíveis em que não seja possível esperar por outra modalidade de crédito adicional obrigando o gestor a se utilizar de créditos extraordinários.

Para exemplificar, pode-se buscar a prática na União e citar dois casos, dentre inúmeros, em que foram abertos créditos extraordinários sem que o país estivesse em calamidade ou guerra.

A primeira situação foi a abertura de um crédito extraordinário para atender a intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, podendo ser esse um dos casos “equiparados” a calamidade pública, isto é, a necessidade de intervenção em outro Estado:

Publicada lei que destina R$ 1,2 bilhão à intervenção no Rio

Da Redação | 03/08/2018, 15h30 – ATUALIZADO EM 03/08/2018, 19h25

Fonte: Agência Senado

Foi publicada nesta sexta-feira (3) no Diário Oficial da União a Lei 13.700/2018, que abre crédito extraordinário no Orçamento da União de R$ 1,2 bilhão para a intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro.

A nova lei tem origem no Projeto de Lei de Conversão (PLV) 21/2018, decorrente da Medida Provisória (MP) 825/2018, aprovado no Senado no último dia 11.

Fonte: Agência Senado

A segunda aconteceu em 2019 e tem uma relação peculiar com a situação fiscal da União que precisou que o Congresso aprovasse crédito orçamentário para pagar aposentados com recursos de operações de crédito. Devido ao montante, haveria a violação da regra de ouro. Interessante que já se sabia dessa necessidade em 2018 e mesmo assim em 2019 foi aberto crédito extraordinário, conforme se verifica na notícia a seguir veiculada na imprensa:

Governo pede crédito extraordinário de R$ 258,2 bilhões em 2019

Medida é necessária para cumprir regra fiscal no próximo ano
Manoel Ventura e Gabriela Valente
31/08/2018 – 15:19 / Atualizado em 31/08/2018 – 15:41

BRASÍLIA — O governo condicionou um total de gastos de R$ 258,2 bilhões no próximo ano, a maioria relacionada à Previdência Social, a aprovação de um crédito extraordinário pelo Congresso Nacional. A previsão está no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2019, enviado apresentado nesta terça-feira.

O crédito será necessário porque a equipe econômica não tem condições de cumprir a chamada regra de ouro (pela qual o governo não pode se endividar para pagar despesas correntes). Os gastos foram colocados como “despesa contingente” e ficam condicionadas à aprovação, no Congresso, de um projeto que permita uma exceção à regra de ouro, com liberação de crédito no valor necessário para cobrir descasamento.

A regra de ouro — uma das três âncoras da política fiscal e estabelecida na Constituição — define que as operações de crédito da União não podem ficar acima das despesas de capital (essencialmente investimentos). Seu principal objetivo é impedir que o governo aumente a dívida pública para pagar gastos correntes, como folha ou benefícios previdenciários. O problema é que a crise fiscal dos últimos anos derrubou os investimentos e elevou o endividamento, dificultando o cumprimento da norma.

Mas, por que a União fez isso? Por que os órgãos de controle aceitaram? Vale ressaltar que o TCU tem acórdãos que reforçam que os créditos extraordinários abertos por meio de medidas provisórias se destinam a despesas imprevisíveis e urgentes, conforme delimitado na Constituição Federal, a exemplo de situações decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.

Em certa ocasião o TCU respondeu sobre a “possibilidade de abertura de crédito extraordinário por meio de medida provisória (MP), quando a insuficiência de dotação puder acarretar graves prejuízos ao acesso à educação”. A dúvida dizia respeito, especificamente, à abertura de crédito extraordinário por medida provisória a ser destinado ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

A questão foi levantada em razão da proximidade, à época, do encerramento dos contratos mantidos com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal para administração da carteira de financiamento do Fies. E, também, da indisponibilidade orçamentária na Lei Orçamentária Anual de 2016 para cobrir as respectivas renovações. Na essência, assim se manifestou o Tribunal conforme notícia veiculada em seu site:

A edição de MP para abertura de créditos extraordinários é exceção à proibição de utilização dessa medida em matéria orçamentária, conforme frisou o TCU à consulta formulada. Isso porque esses créditos são destinados a combater situações extremas e urgentes que, por sua natureza, dispensam a indicação prévia da fonte de recursos e toleram o exame do Legislativo posteriormente, na sistemática própria das medidas provisórias.

Para o Tribunal, no entanto, embora os gestores encarregados da política pública não tenham se omitido na correta previsão dos recursos, as decisões dos poderes Executivo e Legislativo ao longo do processo orçamentário afastaram a presunção de imprevisibilidade, primeiro requisito para abertura de créditos extraordinários.

A relatora do processo, ministra Ana Arraes, comentou que “a resposta formulada pelo TCU não deve ser determinada pelas especificidades da situação que motivou a demanda, pois ela constitui prejulgamento da tese, e não de um caso concreto”. Ela também mencionou que “não cabe ao TCU proferir qualquer juízo quanto ao mérito das despesas, que podem mesmo ser importantes e oportunas”. No entanto, mesmo diante de situação social relevante, a relatora entendeu que não foram preenchidas as condições expressas na Constituição Federal para abertura de crédito extraordinário.

Foram duas as peculiaridades do crédito extraordinário em questão, que era destinado ao pagamento de aposentados. A primeira era a necessidade de o Governo Federal ter autorização do Congresso para violar a regra de ouro, pois as operações de crédito iriam ultrapassar as despesas de capital. A segunda, está relacionada com a regra constitucional do teto de gasto e o montante do crédito. O governo precisava de um crédito de mais de 250 bilhões de reais, que por sua vez, se fosse olhar somente pela regra de ouro poderia ser um crédito especial. Contudo, se não fosse por meio de crédito extraordinário o valor do crédito seria computado para fins de limite de apuração do teto de gasto e o governo não poderia ultrapassar, sob pena de cometer crime de responsabilidade. Assim, a única saída, já conhecida de antemão, foi avisar no PLOA de 2019 que seria enviada ao Congresso Medida Provisória abrindo crédito extraordinário para pagamento em sua maior parte de aposentadorias. Portanto, trata-se de situação ímpar e peculiar, mas que mostra que a leitura do artigo constitucional muitas vezes não é tão absoluta.

A terceira situação exemplifica muito bem um caso de despesa urgente, imprevisível e de grande relevância que ensejou a abertura de crédito extraordinário. Aconteceu quando a União precisou prestar apoio ao Estado do Rio de Janeiro para garantir a realização das olimpíadas de 2016, considerando o risco de não cumprimento de algumas obrigações assumidas pelo Estado em função deste ter decretado estado de calamidade financeira. Vale ressaltar que essa foi uma invenção no governo do Estado não prevista em nenhuma legislação. Na essência o Estado disse: União, me ajuda que eu quebrei!!

30/06/2016 02h13 – Atualizado em 30/06/2016 07h36

MP que libera R$ 2,9 bilhões ao Rio é publicada no Diário Oficial
Dinheiro será destinado à segurança relacionada aos Jogos Olímpicos.
MP tem aval do Tribunal de Conta da União (TCU).

Após o aval concedido na tarde desta quarta-feira (29) pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o presidente em exercício Michel Temer assinou à noite a Medida Provisória (MP) que libera, de forma emergencial, para o Rio de Janeiro R$ 2,9 bilhões destinados a ações de segurança pública relacionadas à Olimpíada.

A MP 736 foi publicada no Diário Oficial da União no início da madrugada desta quinta (30).

A negociação para a liberação da verba tinha sido feita entre Temer e o governador em exercício do Rio, Francisco Dornelles.

O TCU deu aval, na sessão desta quarta, ao socorro financeiro da União ao Rio de Janeiro, de R$ 2,9 bilhões, a serem gastos com a segurança da Olimpíada. A análise foi feita a partir de uma consulta encaminhada pelo próprio ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, sobre a abertura de crédito extraordinário por meio de MP.

Os ministros do tribunal avaliaram que as características da situação – inclusive de imprevisibilidade e urgência – justificam que a União faça o repasse ao Rio de Janeiro.

Interessante ver que a justificativa do TCU para comprovar os requisitos para a abertura do crédito se baseiam na urgência e imprevisibilidade:

Critérios

Para dar esse aval, a equipe técnica do TCU avaliou que a liberação do crédito se enquadra no critério de situação “imprevisível”, já que o governo federal não poderia prever, ao elaborar o Orçamento deste ano, em agosto de 2015, que esse gasto ocorreria.

Também é um caso de “urgência”, segundo o tribunal, pois não haveria tempo hábil para a elaboração e tramitação de um projeto de lei.

Além disso, o TCU avaliou que se trata de um evento internacional para o qual houve um comprometimento da Presidência do país e do qual participarão chefes de Estado de diversos países – o que exige níveis elevados de segurança.

O relator do processo e vice-presidente do TCU, Raimundo Carreiro, chegou a dizer, durante a sessão, que recebeu um documento de conteúdo sigiloso do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência que apontava as consequências para o país caso a União não faça o repasse ao Rio de Janeiro.

Conclusão

Para abertura de créditos extraordinários deve-se comprovar na exposição de motivos do crédito a relevância, urgência e imprevisibilidade. Apesar não serem somente para casos de calamidade pública, deve-se ter muito cuidado para que não seja disseminada a prática de abertura de créditos com base apenas em avaliações estreitas, internas a uma determinada área governamental, pois nesse caso haveria risco significativo para a integridade e a consistência do arcabouço orçamentário-financeiro, inclusive podendo usurpar o papel do legislativo.

 

Paulo Henrique Feijó¹

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¹ Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi – Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Volume 2: Suprimento de Fundos; Entendendo Resultados Fiscais; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Patrimonial Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Representante do CFC na Associação Interamericana de Contabilidade (AIC).

31 de agosto de 2020

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