A Pandemia e a decretação de calamidade pela União fizeram com que quase todos os entes e órgãos de controle se voltassem para o artigo 65 da LRF. Sobre o tema já foram escritos os seguintes artigos²: a) União: Calamidade Pública e as Regras Fiscais; b) Estados e Municípios: Calamidade Pública x Regras Fiscais; c) LRF: Pandemia, Calamidade Pública e Amarras Fiscais; d) Créditos Extraordinários – Somente para Calamidade Pública?
O propósito deste artigo é correlacionar vários pontos abordados nos referidos artigos, que cumprem seu papel de provocar o debate sobre o tema. Nesse contexto verifica-se que ainda persiste, por alguns, o seguinte entendimento: Créditos Extraordinários somente podem ser abertos se o município tiver o decreto de calamidade pública reconhecido pela assembleia estadual?
Para responder a essa pergunta é importante partir da leitura do texto constitucional que permite a abertura do crédito adicional do tipo extraordinário, sacramentado no artigo 167, § 3º, da Constituição Federal:
“Art. 167. (…)
§ 3º A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62.” (grifos nossos)
Primeiramente não se observa nenhuma condicionante no texto constitucional que estabeleça que a abertura de crédito extraordinário dependa de alguma autorização do parlamento estadual ou mesmo federal. Por outro lado, como abordado em outro texto, considera-se que o final do texto constitucional (artigo 167, § 3º): “…como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública…” tem caráter exemplificativo e não exaustivo, não havendo impedimento para abertura de crédito extraordinário para outras despesas urgentes e imprevisíveis que não as citadas no referido parágrafo.
Outro ponto importante é que a decretação de estado de calamidade pública deve ser caracterizada segundo critérios já estabelecidos em decreto federal³. Trata-se de situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido.
Pela definição se verifica que o estado de calamidade pública é decretado por governantes em situações reconhecidamente anormais, decorrentes de desastres (naturais ou provocados) e que causam danos graves à comunidade, inclusive ameaçando a vida dessa população. É preciso haver pelo menos dois entre três tipos de danos para se caracterizar a calamidade: danos humanos, materiais ou ambientais. Assim, não pode ser decretada ao bel prazer do chefe do executivo devendo ser caracterizada a situação de anormalidade.
Um fato relevante no modelo brasileiro é que a decretação desse estado é uma prerrogativa reservada para as esferas estadual e municipal, isto é, somente governadores e prefeitos podem decretar calamidade pública. Na esfera federal, podem ser decretados apenas dois tipos dos chamados estados de exceção: o estado de defesa e o estado de sítio – que é o mais grave.
Então, de onde vem a dúvida quanto a necessidade ou não de haver o reconhecimento da assembleia estadual, quando os municípios decretam calamidade pública? Basicamente do artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que assim estatui:
LRF, Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação: (grifo nosso)
I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70;
II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput no caso de estado de defesa ou de sítio, decretado na forma da Constituição.
Dessa forma a principal vantagem para o Município em ter a situação de calamidade pública reconhecida pelo parlamento estadual é a suspensão de prazos para cumprimento de limites fiscais estabelecidos na LRF e o fato de o governo ficar desobrigado de fazer contingenciamentos para atingir a meta fiscal.
Segundo o artigo 65 da LRF ficam suspensos os prazos previstos para:
a) ajustar o montante da despesa com pessoal que estiver acima do limite em cada Poder ou Órgão – dois quadrimestres, sendo pelo menos um terço no primeiro;
b) recondução do valor da dívida consolidada ao limite estipulado na resolução do Senado – três quadrimestres, reduzindo o excedente em pelo menos 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro;
Aqui também cabe observar que em nenhum momento a LRF estabelece que o reconhecimento da calamidade por parte da assembleia estadual seja condicionante para abertura de créditos extraordinários.
Assim, uma vez preenchidos os requisitos e decretado o estado de calamidade pública o governante tem à sua disposição poderes que em situações normais não seriam permitidos, com o objetivo de proteger a população atingida e ter mais agilidade nas ações governamentais necessárias ao enfrentamento da calamidade. Um exemplo é a permissão de dispensa de licitação na contratação de obras e serviços enquanto durar a calamidade⁴. Um efeito direto para o trabalhador é a possibilidade de sacar parte do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Outro exemplo é a possibilidade de abrir créditos extraordinários para situação urgentes e imprevistas. Contudo, poderia um município em situação de emergência que é uma situação anterior ao estado de calamidade pública, se valer de créditos extraordinários. Sim, pois o que deve fundamentar o crédito extraordinário são três requisitos: relevância, urgência e imprevisibilidade. E nesse caso não há nem decretação de calamidade.
Para exemplificar, imagine que determinado município está numa situação fiscal confortável em relação aos limites de endividamento e de comprometimento das despesas com pessoal em relação à RCL. Entretanto houve um desastre natural em que uma barragem próxima ao município rompeu e arrastou casas causando destruição a ponto de o prefeito ter que decretar calamidade pública. O lado dessa situação é que a gestão municipal vinha agindo com extrema responsabilidade fiscal a ponto de ter acumulado recursos em um Fundo de Equilíbrio Fiscal (FEF), que foi criado justamente para ser acionado em caso de eventos que pudessem comprometer o equilíbrio das contas públicas municipal.
Nessa situação a Prefeitura decidiu que não precisará se beneficiar de suspensão dos limites fiscais nem de descumprir a meta fiscal, pois poderá utilizar recursos do FEF e o Governo Federal também prometeu ajuda ao município. Nesse sentido o município não precisará ter o decreto de calamidade reconhecido pela a Assembleia Estadual, pois não necessitará dos benefícios previstos no artigo 65 da LRF.
Uma vez decretada a calamidade a prefeitura poderá inclusive se habilitar a receber ajuda da União, sendo um necessário e importante passo, mas a União também precisará reconhecer. Para isso, o Poder Executivo municipal deverá solicitar mediante requerimento o reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Poder Executivo federal⁵, a quem cabe também definir o montante de recursos a ser destinado ao ente afetado. E para isso também não precisará do reconhecimento da Assembleia Estadual.
Nesse caso a prefeitura dada a relevância, urgência e imprevisibilidade dos fatos poderá dispor da abertura de créditos extraordinários, que serão financiados com recursos do FEF e dos repasses da União. Para isso não precisará de reconhecimento da Assembleia Estadual.
Conclusão
A única questão em comum aos regramentos de créditos extraordinários e o dispositivo da LRF é a decretação de calamidade pública, mas as exigências e objetivos de cada dispositivo são distintas.
Nesse sentido, a abertura de crédito extraordinário pelos entes em situação de calamidade pública deve atender, além da relevância, aos requisitos relacionados com a exigência constitucional: urgência e imprevisibilidade. Nessas situações pode-se claramente vislumbrar a necessidade de despesas urgentes, não previstas nos orçamentos municipais. A prerrogativa de abrir crédito extraordinários independe do reconhecimento da calamidade pela assembleia estadual, que por sua vez, somente será necessário caso o município queira usufruir dos benefícios previstos no artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Paulo Henrique Feijó¹
___________
¹ Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi – Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Volume 2: Suprimento de Fundos; Entendendo Resultados Fiscais; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Patrimonial Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Representante do CFC na Associação Interamericana de Contabilidade (AIC).
² Artigos integram o Boletim de Administração Municipal (software Fiorillli) e tamém estão disponíveis no Blog da Gestão Pública: www.gestaopublica.com.br.
³ Decreto nº 7.257, de 4 de Agosto de 2010.
⁴ inciso IV do artigo 24 da Lei nº 8.666/1993
⁵ Artigo 7º Decreto nº 7.257/2010