Em contradição ao princípio internacional da não afetação das receitas (não vinculação), no setor público brasileiro parcela expressiva do produto da arrecadação dos impostos, contribuições e outras receitas públicas não pode ser livremente programada, a cada ano, visto que sua utilização se encontra previamente estabelecida na Constituição ou em diversos dispositivos legais. Diante da natural carência de recursos com que contam os governos, e da ilimitada demanda da sociedade por bens e serviços públicos, foram se ampliando ao longo do tempo os dispositivos constitucionais e legais que buscam privilegiar determinados gastos, como aqueles destinados à saúde, à educação e à segurança.
Diante da demanda infinita para recursos finitos é comum que determinadas áreas clamem por mais verbas, seja para realizar investimentos ou para superar crises. Acontece que muitas vezes os recursos existem, mas não podem ser remanejados e destinados para a área que mais precisa porque estão legalmente ou constitucionalmente vinculados. De maneira geral, vincular receita é previamente destinar parte ou a totalidade da arrecadação de determinada receita para uma finalidade específica seja por meio de fundos ou estabelecimento de percentuais a serem destinados e aplicados a determinada área. E é aí que nasce a irracionalidade de ter recursos e não poder utilizar para o que é mais necessário. Isso quando não há um entesouramento nas contas dos fundos, ou seja, é como se fosse um “lucro” ou poupança do órgão, esquecendo-se que se trata de recurso público.
O mundo vive a pandemia do Coronavírus e no Brasil já se vislumbra os seus efeitos sobre as combalidas contas públicas a partir de dois efeitos nefastos para a gestão orçamentária e financeira: queda de arrecadação de receitas e aumento de despesas. Neste momento a destinação de mais recursos para a área de saúde será inevitável e a resposta, num ambiente de crise fiscal, deve vir de remanejamento de recursos destinados a outras áreas, que neste momento são menos importantes, afinal está-se falando muitas vezes de salvar ou deixar morrer.
Tomando-se como exemplo o Estado do Rio de Janeiro, não são poucos os fundos que “guardam” recursos para determinado órgão ou setor. Todas as entidades querem um fundo pra chamar de seu, mesmo que seja com recursos extraídos da sociedade. Assim, pode-se citar alguns fundos que destinam recursos para áreas de governo, em geral pertencente à estrutura do Poder Executivo:
a) Fundo Especial do Corpo de Bombeiros (FUNESBOM);
b) Fundo Especial da Polícia Militar (FUNESPOM);
c) Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (FECAM);
d) Fundo Estadual de Cultura;
Existem outros fundos vinculados à órgãos e aos demais poderes que de alguma forma se apropriam dos recursos da sociedade como se fossem seus e não desejam que os recursos arrecadados passem pelo processo análise de prioridade, que seria a discussão da lei orçamentária. Afinal, fazer orçamento é estabelecer prioridades. São exemplos desses fundos no Estado do Rio de Janeiro:
a) Fundo Especial do Tribunal de Justiça (FETJ);
b) Fundo Especial de Apoio a Programas de Proteção e Defesa do Consumidor (FEPROCON);
c) Fundo Especial de Administração Fazendária (FAF);
d) Fundo Especial da Procuradoria Geral do Estado (FUNPERJ);
e) Fundo Especial da Assembleia Legislativa;
f) Fundo Especial de Modernização do Controle Externo (FEM/TCE-RJ);
g) Fundo Especial do Ministério Público (FEMP)
Com raríssimas exceções, o mecanismo de destinar previamente recursos para determinadas finalidades está intimamente associado à desconfiança do legislador do presente em relação ao governante do futuro. Assim, se por um lado a prática busca garantir que determinadas prioridades sejam atendidas pelos governantes, por outro demonstra que a sociedade brasileira, representada no parlamento, ainda não atingiu o nível de amadurecimento necessário para a discussão de suas prioridades. Isso fica muito evidente na situação de pandemia do Coronavírus, onde a prioridade máxima deveria ser destinar recursos para as ações de combate ao vírus.
A situação atual demonstra a perversidade do processo de vinculação em que, ao privilegiar determinadas ações do governo, todas as demais são prejudicadas e aquela que foi privilegiada nem sempre seria a prioridade do momento.
Percebe-se na sociedade e no discurso parlamentar uma propensão natural a defender a vinculação de recursos, principalmente quando se trata de áreas entendidas como prioridade natural para o cidadão, como saúde, educação e segurança. Contudo, se esquece que, de maneira geral, a vinculação de receitas acarreta diversas dificuldades para uma boa gestão das finanças públicas, sendo mais relevantes as seguintes:
• inversão de prioridades – os órgãos que contam com receitas vinculadas tendem a executar, com esses recursos, os gastos de menor importância na escala de prioridade do governo, de forma a pressionar o Tesouro, posteriormente, no sentido da alocação de recursos adicionais necessários para o atendimento de despesas incomprimíveis, como os pagamentos de pessoal e encargos sociais;
• engessamento das prioridades – a vinculação atrela os gastos de hoje às prioridades do passado, em prejuízo das necessidades que se apresentarem em cada época. Nesse sentido, a vinculação é a própria negação da capacidade dos representantes eleitos pela sociedade de definir quais as prioridades para cada ano. Sob a ótica das funções clássicas do orçamento limita fortemente a função alocativa;
• automatismo do gasto – uma vez estabelecida a vinculação, os setores beneficiados procuram, e muitas vezes conseguem, mantê-la ao longo dos anos, e os gastos são realizados mesmo quando já não se encontram alinhados com as prioridades e estratégias do governo; e
• baixa elasticidade da despesa vinculada – os normativos que instituem a vinculação de receitas muitas vezes impõem a realização de novas despesas de difícil compressão, de forma que, quando há frustração da receita vinculada, as despesas correspondentes nem sempre são reduzidas, mas honradas com recursos de outras fontes. Trata-se, portanto, de mecanismo que funciona sempre em sentido único, contribuindo para a ampliação do gasto não discricionário do governo.
O que muitos esquecem é que ao acabar com a vinculação de receitas não significa que determinada área deixará de receber os recursos, mas que deverá demonstrar que suas despesas são mais prioritárias que outras. Assim, a boa prática reconhecida internacionalmente por meio do princípio orçamentário da não-afetação das receitas (não vinculação de recursos), é a de que as prioridades devem ser debatidas a cada ano quando da elaboração e discussão da lei orçamentária.
O mais intrigante é observar parlamentares a favor de fundos quando a palavra final sobre qualquer lei é do parlamento, inclusive a lei orçamentária. Logo, ao aprovar um fundo está de antemão destinando recursos de forma fixa e contínua sem saber quais serão as prioridades futuras.
É importante enfatizar que, tendo em vista que já existem vinculações de recursos impostas pela Constituição Federal que garantem recursos mínimos para Educação e Saúde, não configura boa prática orçamentária engessar o orçamento com novas vinculações nos níveis estaduais e municipais.
Este momento de pandemia e de crise econômica causada pelo Coronavírus pode ser uma oportunidade para o Executivo apresentar a proposta de extinguir todos os fundos estaduais e municipais. Com a extinção, as disponibilidades de caixa existentes na data de promulgação da lei seriam transferidas ao Tesouro estadual ou municipal e o fluxo de receitas do exercício seriam alocados conforme estabelecido na Lei de Diretrizes Orçamentárias de cada exercício. Afinal de contas, como explicar que enquanto os menos favorecidos precisam de apoio de políticas públicas governamentais vários órgãos “guardam”, como se fossem seus, dinheiro público que foi de alguma forma retirado da sociedade. A legislação dos fundos impede que os recursos sejam utilizados para outras finalidades que não tenham relação com atividades dos órgãos que os administram. Os Fundos Especiais dos Poderes (Assembleias e Câmaras, Tribunais de Contas, Ministério Público) e outros vinculados a órgãos (Procuradoria, Defensoria, por exemplo), isto é, sem vínculo com áreas sociais prioritárias como segurança, saúde, educação e assistência social deveriam ser os primeiros a serem extintos. Trata-se de uma aberração sob o contexto moral bem como contraria as boas práticas orçamentárias. Já passou da hora de mudar!!
Contudo, outros fundos do Executivo também devem ser reavaliados, mas pelo menos esses têm os recursos destinados para áreas finalísticas com impacto direto na vida do cidadão, como o caso dos fundos dos Bombeiros, Polícia Militar e Segurança Pública.
Para ter uma ideia do impacto no Estado do Rio de Janeiro a extinção dos fundos dos Poderes e vinculados à órgãos possibilitaria a transferências de recursos para o Tesouro Estadual, considerando os saldos de caixa livres no final de 2019, já deduzidas as obrigações financeiras existente, da ordem de R$ 1,5 bilhão. A tabela a seguir apresenta as disponibilidades de caixa de cada fundo:
Em reais
Fundo | Fontes de Recursos | Disponibilidade Bruta | Disponibilidade Líquida* |
Fundo Especial da ALERJ. | 230 | 203.518.724,10 | 185.502.044,45 |
Fundo Especial de Modernização – TCE-RJ | 081 – 230 | 101.224.315,82 | 99.401.013,05 |
Fundo Especial do Tribunal de Justiça – TJ | 081 – 230 – 232 – 233 | 819.093.025,21 | 686.508.232,91 |
Fundo Especial da Esc. de Magistratura RJ | 081 – 230 | 49.459.428,54 | 48.699.301,47 |
Fundo Especial da PGE/RJ | 081 – 230 – 232 | 167.160.628,62 | 161.103.590,28 |
Fundo Especial do MPE/RJ | 081 – 230 | 345.958.246,36 | 318.000.641,94 |
Fundo Especial da Defensoria Pública – ERJ | 081 – 101 – 212 – 230 – 232 – 999 | 54.998.398,09 | 50.278.507,91 |
Total | 1.741.412.766,74 | 1.549.493.332,01 |
Fonte: SiafeRio
Com a extinção dos fundos a LDO desempenharia o importante papel de estabelecer, a cada exercício, os percentuais mínimos da Receita Corrente Líquida (RCL) que deverão ser destinados às áreas de cultura, segurança pública e assistência social, na forma aprovada pelo legislativo, considerando que saúde e educação já possuem limites mínimos estabelecidos na Constituição Federal. Na essência seria um grito silencioso da sociedade: O Dinheiro é Nosso!
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Paulo Henrique Feijó: Graduado em Ciências Contábeis e Atuariais pela Universidade de Brasília – UNB e Pós-Graduado em Contabilidade e Finanças pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Co-Autor dos Livros: Gestão de Finanças Públicas: Fundamentos e Práticas de Planejamento, Orçamento e Administração Financeira com Responsabilidade Fiscal; Curso de Siafi: Teoria e Prática da Execução Financeira no Siafi – Volume 1 – Execução Orçamentária e Financeira; Volume 2: Suprimento de Fundos; Entendendo Resultados Fiscais; Entendendo a Contabilidade Orçamentária Aplicada ao Setor Público; Entendendo a Contabilidade Patrimonial Aplicada ao Setor Público; Entendendo as Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público. Autor do livro Entendendo as Mudanças na Contabilidade Aplicada ao Setor Público. Representante do CFC na Associação Interamericana de Contabilidade (AIC).